terça-feira, 8 de junho de 2010

Um afeto imenso


Sabe quando você tem um machucado em algum lugar da boca e não consegue parar de cutucar, para sentir a dor?

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Foi uma noite terrível. Meus olhos ardiam de tanto que eu chorei. 

Já não ando muito bem – chorona eu sempre fui, mas há fases da vida de em que as lágrimas parecem estar sempre ali de prontidão. 

Chorei na sexta, com a morte do filho do Paulo Teixeira. Chorei no sábado de manhã, falando sobre isso com a minha amiga Lylian. 

Eu choro vendo filmes e fotos, lendo livros, ouvindo histórias. Chorei no Bola da Vez com o Nilton Santos contando de quando foi visitar o Garrincha semi-consciente no hospital. Chorei no Bom Dia Sydney com o boxeador brasileiro que projetou glórias imensas na Olimpíada e caiu na primeira luta – e pedia desculpas via satélite para a namorada, a família, o treinador e todos os que haviam apostado nele, pela “decepção”. Choro com histórias de bichos que morreram – e de bichos que ficaram inconsoláveis quando seus donos morreram. 

Chorei pra valer com a morte do meu gatinho.

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Eu não era de gato, era de cachorro. Tive pastor alemão, doberman, beagle. Minha avó teve boxer, piquinês... Meu tio tinha cães fila e viralatas. Meu tio-avô tinha perdigueiros.

Depois de casar – já com uma filha de três meses me acompanhando até o cartório... – não tive mais bichos. Tive filhas, tive muitos empregos, tive endereços diversos e vida doméstica escassa. Até que, 13 anos depois, decidimos que já estava na hora de ter outro. A Julia, ainda em tratamento de leucemia, se encantou com o gato da Ana, nossa amiga, e a gente achou que um bicho ia fazer muito bem a ela. E gato em apartamento não parecia tão difícil... “Eles são mais independentes, não fazem tanto barulho”. Mas o médico desaconselhou – havia qualquer contraindicação por causa dos medicamentos que a Julia tomava, uma vulnerabilidade que não combinava com gato. “Mas cachorro, tudo bem”.

Pronto, resolvemos ter um cachorro. O Marcelo, pai da Julia, que também era louco por eles – uma vez voltou de Maromba com uma cadelinha guardada dentro da jaqueta, na esperança de que o pai o deixasse ficar com ela em São Paulo – começou a procurar por um. Que seria um viralata adotado, não tínhamos a menor dúvida.

Um dia, me mandou um email com o retrato de um filhote preto e branco, com mancha de pirata em um olho e a expressão do Gato de Botas do Schreck (súplica irresistível!). “É esse?”. É esse.

Dub (batizado depois, em homenagem à vertente do reggae que fala mais ao coração do Marcelo) tinha sido achado debaixo da Ponte Eusébio Matoso. As meninas o salvaram e botaram o retrato na internet, e assim ele deixou de virar panqueca debaixo da roda de um caminhão e veio morar em Perdizes.

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Anos depois, veio o Taz. “Mãe, um cara lá do trabalho pegou um gatinho preto em um terreno baldio mas não vai poder ficar com ele. Será que a gente fica?”. Pensei um minuto e meio, talvez dois. “Traz”! “Será que o Dub vai se acostumar com ele”? “Já viu quanta história tem de bicho diferente convivendo? Cadela que amamenta leãozinho, gata cuidando de macaquinho... A gente dá um jeito”.

Naquela noite ele chegou; cabia na palma da mão. Usava uma coleira cor-de-rosa – a gente achava que era “ela”. Cabeça grande para o corpo, orelhas grandes para a cabeça, pelo acinzentado, fosco, estranho. Uma graça – e feio que só. Pensei em chamá-la de “Betty” (A Feia). As meninas ficaram bravas comigo: “Não é feia”! “É feia sim, mas é linda”.

Curioso...












...E atrevido

























Era feinho ou não era?













Na primeira ida ao veterinário, descobrimos que era gato. O nome demorou a surgir – até que sua natureza de peste nos levou  a pensar em Taz...mânia, Demônio da. Como minha mãe costumava dizer a meu respeito - “dormindo, é um anjo”. Se ajeitava no colo da gente e
ronronava feito um ventiladorzinho a pilha. Acordado, era incrível. Brincalhão, irrequieto. Escalava a perna da gente como se fosse um macaco subindo no coqueiro.

Cresceu e ficou lindo, pelo preto lustroso, patinhas brancas. Bigodes pretos de um lado e brancos do outro. E continuava um palhaço.

Uma de suas brincadeiras favoritas era de emboscada. Ia para trás do sofá, do balcão, da porta e esperava o cachorro passar na sua frente. Quando passava, CRAU! Saía voando pra cima dele como se fosse o Hong Kong Fu (um cachorro de desenho animado, procure no You Tube se você não é do meu tempo). Dava altos botes, pulava nas costas, saía correndo e deitava no chão, chamando pra “luta de solo”. Eu me divertia com o jiu-jitsu deles. Às vezes ficava meio violento, eu ia separar – sabe como é, menino adora brincadeira de mão, acabam se machucando.

Taz trocava qualquer almofada felpuda por uma sacola plástica ou caixa de papelão. Depois da mudança, estava em uma espécie de paraíso, escolhendo a cada dia um novo berço no meio da bagunça. Às vezes sumia – estava no alto do meu altar budista ou dentro do guarda-roupa.

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Quando a gente ainda morava no apartamento, não podia abrir a porta que ele saía para o corredor como um foguete. Adorava se esconder atrás do vaso de flores da vizinha. Quando a gente ia buscar, baixava o “gatinho cambalhota”: começava a rolar pelo chão, cabeça primeiro. Ou corria de lado pelo rodapé. Pura diversão.

Taz adorava água. Entrava no banheiro para ficar admirando um banho de chuveiro. Se a gente se distraísse e deixasse o box aberto, ele se refestelava no chão molhado. Ah, sim, além de caixas de papelão e sacolas de plástico, adorava deitar em uma pia. E tomar água da torneira.

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Chegaram mais dois cães viralatas; Taz ficou amigo do Ziggy, que chegou filhotinho e cresceu até parecer um cabrito. Ziggy é catastroficamente desajeitado; não sabe dosar sua força e faz estragos imensos com o rabo, as patas e os dentes. Mas eles brincavam o tempo todo e não se machucavam quase por milagre. Nos momentos jiu-jitsu dos dois, Ziggy abocanhava a cabeça do Taz inteira e o arrastava pela sala. O gato reclamava quando ele pegava forte demais, e se fosse o caso metia-lhe um jab no focinho depois.  

Com o Limão, o último cachorro a se juntar a família, ele não se enturmou muito não. Mas foi engraçadíssimo ver ele examinando o recém-chegado – consegui fazer umas fotos e vídeos.

Taz também impôs respeito a Menina, a gata da vizinha. O Dub tinha medo dela; ela era brava. Mas com o Taz não adiantou. Ela fez cara feia, mostrou os dentes, mas ele nem aí. Chegaram a brincar um pouco, e ela também não era muito sociável... Irresistível, o Taz.

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Os três cachorros + o gato transformaram minha casa em um pandemônio. O ecossistema se desequilibrou e eles, na minha ausência, destruíram livros, álbuns, fotos, tupperwares, vasos, plantas, pés de mesa e cadeira, almofadas, puxadores de gaveta, até a beira do degrau. Enlouqueci. Devia ter colocado uma câmera de vídeo para ver o terror que eles tocavam.

O gato era cúmplice crucial da bagunça. Usando da técnica desenvolvida quando estava impaciente – subia na geladeira e empurrava o pote de ração lá de cima, para que ele se espatifasse no chão e ele comesse o que caía – Taz alcançava os objetos nas alturas e os entregava para o sacrifício ritual.

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Taz foi uma das minhas companhias mais queridas nos últimos meses. Continuo amando os cães, mas nunca pensei que eu fosse gostar tanto de um gato. Ele e o Dub eram os meninos de um lar cheia de mulheres; na casa nova, boa parte do gosto em conquistá-la estava em compartilhá-la com eles (Ziggy e Limão foram passar um tempo na casa da avó no interior). Os dois tinham muito mais espaço – mais explorado pelo gato. As pilhas de caixas, os armários. A varanda que dava acesso aos telhados vizinhos, as janelas... A rua.

Taz adorou sair pra rua. Há vários gatos e cães na vizinhança, e eles se freqüentam. Fui soltando aos poucos, me preocupei da primeira vez em que ele saiu de manhã e só voltou à noite. “Gato é assim”, me diziam. “Mas ele é de apartamento... E tem tanta gente malvada...”. "Ele volta". E voltava mesmo. E corria escada acima, escada abaixo, chamando a mim e o Dub para brincar de pega-pega, esconde-esconde.

Outro dia (ver abaixo...) subiu na árvore na frente de casa e não conseguia descer. Foi uma epopéia buscá-lo lá. E ontem... Ontem ele saiu de mansinho e voltou carregado, desacordado, seriamente machucado. Não resistiu.

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Semana passada, eu olhei para meu gatinho querido, cheio de vida, cheio de graça, e lembrei do que sempre me lembro: “E pensar que um dia eu vou ver esse corpo sem vida... Um dia ele vai deixar de ser, deixar de existir”. Nó na garganta, frio na barriga. Mas esse dia ia demorar. Taz ia morrer de velhice. Passaríamos muitos anos juntos na casa nova.

Taz  se foi na flor da idade... Quem sabe por algum movimento brusco, alguma brincadeira de emboscada que fez com que ele fosse colhido por um carro desprevenido.

Perder um gato não se compara a perder um filho, mas dói, dói demais. E pensar que tem gente que maltrata por querer... Deus do céu, permita que no mundo nunca mais, nunca mais façam mal a um bichinho. Nem a uma criança. Nem a um velhinho.

Pensar no quanto ele era indefeso me fez chorar, chorar, chorar. Tadinho... Tadinho. 

Que Deus proteja os indefesos – seja Ele quem for, sejam eles quem forem. E que todos os bichos, todos os seres, possam ser alegres como ele foi, e dar tanta alegria quanto ele deu. A saudade eu logo mais consigo tratar, dando amor em nome dele para outra coisinha feia e linda que aparecer.

8 comentários:

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  3. Incrivelmente, na ultima vez que te visitei..senti um carinho tão grande pelo Taz..ali no muro olhando para o horizonte...que compartilho com vc ..este momento de tristeza. Mas, o legal é saber que Taz ...curtiu a vida a doidado! Beijos com amor..Pam

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  4. Eu sempre convivi com eles e tenho uma teoria: só não gosta de gatos quem não os tem. Meus pêsames! É muito triste perder um bichano, parece que as coisas ficam mais tristes por uns tempos... Mas tem que seguir em frente e guardá-lo na memória como uma boa lembrança! Até, Iris.

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  5. Sinto muito Soninha. Apesar de tantas perdas pelo caminho, a gente não se acostuma com elas.
    Infelizmente, nossos pets devem ficar trancados em casa, pois em sua ansia de liberdade, acabam morrendo e deixando um imenso vazio.

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  6. fez uma semana hoje que tive que presenciar a eutanasia do meu cachorro, que me acompanhou desde os 13 anos, aqui em casa tinhamos 6 cachorros.
    Nunca pensei o quanto seria doloroso presenciar a partida de um deles.
    me emocionei com o seu relato e te digo... não importa se é bicho ou gente... a gente sente pq amamos quem nos faz bem...
    força pra nós!
    um grande beijo

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