sexta-feira, 9 de setembro de 2011

De capivaras, futebol e jornalistas. Ah, e a vida

Meu amigo Conrado me enviou, de madrugada, um dos textos mais lindos que eu já vi - e que, como muitas outras coisas lindas, tinha m'escapado. Por que isso veio parar na minha caixa de entrada? Pela referência aos Beatles. Pra completar a lindeza :o)

Por que a crônica não saiu semana passada
Cora Ronai

Em primeiro lugar, agradeço a gentileza dos amigos e leitores que mandaram emails preocupados pela ausência da coluna. Em segundo, peço desculpas pela falha. É que escrevo a crônica às terças-feiras, e a última terça-feira foi o dia do enterro da minha tia Eva, que morreu na segunda à tarde, aos 97 anos, no apartamento em que vivia em Copacabana.

Era a última irmã de meu Pai. Acompanhou a História do Século — nasceu em 1915 — e, como a maioria das pessoas, foi alternadamente feliz e infeliz. Sobreviveu a seu marido, seus irmãos, seus amigos. De certa forma, sobreviveu a si mesma: vítima de uma doença parecida com o Alzheimer, confundia os fatos, não se lembrava das pessoas e se esquecia dos detalhes mais triviais.

Seu enterro foi a minha primeira experiência com funerárias e com a inevitável burocracia da morte. Não há filme, livro ou seriado que prepare a gente suficientemente para isso.

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Dizem que todo cronista previdente tem uma ou duas crônicas “frias” na gaveta para casos de necessidade. Se isso é verdade, não conheço muitos cronistas previdentes. A maioria deles vem do jornalismo, e é sabido que jornalista só trabalha sob pressão: isso faz parte das idiossincrasias da profissão. Já tentei inúmeras vezes escrever a tal crônica-para-eventualidades, mas nunca consegui passar do primeiro parágrafo. Não dá liga, soa artificial, fica esquisito.

A despeito disso, prometo tentar, mais uma vez, escrever uma crônica-estepe.

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A semana, que começou de forma dramática, terminou tragicamente, com a morte dolorosa e precoce do Rodolfo Fernandes – mágoa com que todos nós, seus amigos, vamos conviver até o fim da vida.

Além da amizade e do carinho, devo a ele uma das partes mais importantes da minha vida profissional, e uma das aventuras mais divertidas que já vivi. Foi ele quem achou que eu tinha algo a dizer fora dos assuntos tecnológicos, e me convidou a escrever neste espaço; e ele quem teve a idéia de que talvez fosse divertido mandar para a Copa do Mundo a única pessoa da redação que nunca tinha visto um jogo de futebol.

Assim é que, quando O Globo foi cobrir a Copa na Alemanha, em 2006, eu fazia parte da equipe. Estava apavorada. Teria que escrever uma crônica diária, e achava que não teria assunto suficiente, que iria cair num frenesi esportivo onde não sobraria espaço para mais nada.

Só fiquei mais sossegada quando chegamos a Königstein, nossa primeira parada, e mergulhamos num clima de strawberry fields forever – o hotel ficava longe de qualquer coisa relacionada a futebol, mas, em compensação, era cercado de infindáveis campos de morango. Assunto perfeito para mim, mas desesperador para os colegas que, ansiosos para escrever sobre futebol, não sabiam mais o que fazer.

Levei uma pequena capivara de pelúcia como coadjuvante. Alguns anos antes, na Turquia, comprara um camelinho que acabou dando charme a fotos em que eu não tinha nenhum primeiro plano decente. A capivara, que viajou com a missão de servir de primeiro plano para algumas fotos, levou, pelo sim pelo não, um guarda-roupa de torcedora, que ia de camiseta do Brasil a cachecol auriverde.

Na Alemanha foi, aos poucos, fazendo parte não só das fotos, como dos textos. Entrevistou algumas pessoas, foi entrevistada, deu palpites e terminou a temporada amada e odiada pelos leitores.

O povo do futebol detestou. O jornal recebeu montes de emails indignados, querendo saber que palhaçada era aquela, e o que diabos alguém que não entendia nada do esporte estava fazendo na Copa. Por outro lado, até hoje encontro gente que se lembra da capivara com entusiasmo, e me pergunta se ela não vai viver outras aventuras. Na verdade, já viveu um tórrido romance entre Berlim e Paris, e uma história confusa (e inacabada) em São Francisco; mas isso ficou online. O link é coracapi.blogspot.com.

Nem preciso dizer que ficava para lá de insegura diante das críticas. Nunca escrevi para caderno de esporte, e estava pouco acostumada à veemência, digamos assim, com que os leitores se manifestam na área. Levava minhas angústias para o Rodolfo, coitado, que além de ter que lidar com os mil problemas de logística da equipe, tinha, agora, uma cronista biruta com dramas de bicho de pelúcia. No seu lugar, até eu teria dado uma enquadrada na cronista; Copa do Mundo não é lugar para frescura. Mas ele percebia que eu estava de fato aflita, e me tranqüilizava, lembrando que eu não estava lá para escrever sobre futebol. Lembrete desnecessário, ça va sans dire, mas sempre bem-vindo.

Não sei se cumpri a missão a contento, mas sei que vivi dois meses inesquecíveis, em que a leveza e a tranqüilidade com que o Rodolfo lidava com os problemas foram pontos preponderantes. Falta de banda larga, hotel longe da concentração, carro quebrado, toda a sorte de imprevistos ele tirava de letra, sem estresse. Não era difícil imaginar como as coisas poderiam ter ficado tensas com outro tipo de chefia.

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Não tive como não pensar nos 97 anos da minha tia e nos 49 do Rodolfo. Tanto de um lado, tão pouco do outro! Também não consigo deixar de pensar nas sinistras figuras da política que vivem vidas longevas, enquanto ele, tão doce e brilhante, se foi tão cedo. A sensação de injustiça é dilacerante. Então me lembro do meu Pai, que dizia que a vida não faz nenhum sentido, mas que deve ser vivida como se fizesse.

Só pode ser por aí.

(O Globo, Segundo Caderno, 1.9.2011)

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