quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Há um momento em que as pessoas se esgotam da produção em série

Entrevista minha para A CASA - museu do objeto brasileiro.

Você já foi VJ da MTV, apresentadora de um programa jovem na TV Cultura, comentarista esportiva na ESPN. Atuou ainda como vereadora na Câmara Municipal de São Paulo e foi subprefeita da Lapa. De onde vem sua relação com o artesanato e inserção na Sutaco?
Minha relação com artesanato é de apreciadora. Sempre gostei muito de frequentar feirinhas, conhecer o trabalho de vários lugares, sair do Brasil e voltar com peças de artesanato de cada lugar. Admirava a organização da produção artesanal fora do Brasil e lamentava que não tivéssemos nada parecido, que aqui a produção em série, fake, imitando o artesanato, se misturasse tanto com a produção artesanal de verdade – provavelmente, é um problema que outros países tiveram que enfrentar também.
Na Sutaco, juntaram-se três coisas que eu adoro: administração pública, cultura e geração de renda numa escala humana, viável. Às vezes, tenho aflição de olhar para o mundo produzindo coisas aos milhões sabendo que, no fim do dia, será preciso criar necessidades para aqueles milhões de coisas produzidas. Não se trata de suprir as necessidades das pessoas, mas de criar necessidades que sejam atendidas por aquela produção, necessária para gerar emprego. Houve um momento desse tipo quando se incentivou a compra de automóveis para que os empregos da indústria automobilística não fossem perdidos. Onde vamos parar com um automóvel por pessoa? Vamos parar, literalmente! Gosto de pensar em promover geração de renda e desenvolvimento local a partir de uma atividade que é tão significativa, tão importante.
Até quando você fica na Sutaco?
A menos que haja uma grande mudança de planos, saio em abril. Esse é o prazo máximo para ser candidata à prefeita, e o que eu mais quero é ser prefeita algum dia. Mas temos a maior preocupação com o que vai acontecer na sequencia.
Quando se tem um político no cargo de superintendente, isso significa que é uma pessoa que vai defender a Sutaco, que vai lutar pela Sutaco, que vai bater em várias portas, fazer mil e uma conexões e articulações, ou seja, não é simplesmente o executor de uma política. Alguns poderiam alegar que seria melhor ter um técnico nessa posição, mas eu sempre acho que aqueles que ocupam cargos de direção podem ter perfil técnico desde que tenham também um perfil político, de visão de longo prazo e de contatos.
Coisas muito legais têm acontecido com a Sutaco em função de parcerias. Nossa estrutura é mínima – aliás, estamos reivindicando junto ao governo do estado que reconstrua a estrutura da Sutaco, porque ela foi muito enfraquecida ao longo dos anos – mas conseguimos fazer muita coisa com parceiros. Numa parceria com a Imprensa Oficial, abrimos uma loja de porta para a rua na Rua XV de Novembro. Antes, a loja era aqui em cima, no terceiro andar. Agora, dividimos o espaço com a Imprensa Oficial, o que é ótimo. Numa parceria com o Metrô, conseguimos abrir uma loja na estação Vila Madalena. Em parceria com a CDHU, temos cursos de artesanato em vários empreendimentos. Em parceria com o Itesp, iremos cadastrar artesãos de quilombos, aldeias indígenas, assentamentos, dar cursos e, de preferência, trazer seus produtos para vender em São Paulo.
Uma vez começado, acho que é mais fácil manter o trabalho, mas tenho medo. Eu adoro aqui. Se não me eleger dessa vez, pretendo voltar.
De certa forma, um político no cargo de superintendente também confere mais visibilidade à instituição.
Também, nem que seja para esculachar: “olha onde ela foi parar!”

O que é a Superintendência do Trabalho Artesanal nas Comunidades (Sutaco)?
A Sutaco é uma autarquia do governo do estado, ou seja, recebe recursos do tesouro, recursos públicos, e também gera receita própria, tendo sido criada no início da década de 1970. Sua primeira denominação foi Superintendência do Trabalho em Comunidades e dois anos depois é que se estabeleceu o foco no trabalho artesanal em comunidades.
A porta de entrada na Sutaco é o cadastramento do artesão, isto é, a comprovação de que ele é um artesão mesmo, conforme definições consagradas. Há uma portaria do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, que abriga o Programa do Artesanato Brasileiro no âmbito federal, definindo o que é artesanato, o que é artesão, o que não é, o que é trabalho manual, e há também outras conceituações, que aparecem, por exemplo, no Termo de Referência do Sebrae, em documentos da Unesco etc.
No cadastramento, o artesão tem que executar uma peça diante do nosso avaliador para mostrar que não tem empregados fazendo o trabalho para ele e que não comprou o objeto na Rua 25 de Março, deu uma mão de tinta e falou que foi ele que fez. A partir do momento em que o artesão é cadastrado, recebe uma carteirinha que o identifica como profissional do artesanato. Em muitos lugares a carteirinha é pedida ou aceita como comprovação de que ele é de fato um artesão – por exemplo, por prefeituras que organizam feirinhas ou festivais de artesanato. Essa carteirinha pode ser obtida não só aqui, em nossa sede na capital, mas também em mais de duzentos municípios do estado, onde a prefeitura local indica dois servidores treinados para fazer essa avaliação, eles nos remetem os documentos e emitimos o documento.

Além de ser identificado como profissional do artesanato, quais as vantagens, para o artesão, de possuir a carteirinha da Sutaco?
A partir do momento em que o artesão tem a carteirinha, pode emitir nota fiscal pela Sutaco – até um determinado valor. Há condicionantes porque é uma nota fiscal com isenção de ICMS sobre a qual incide apenas uma taxa de 5% – no máximo, se for uma venda de fato – para a Sutaco. Essa é uma das nossas fontes de receita própria. Com essa taxa sobre a nota fiscal, conseguimos investir em mais artesanato.
Além disso, a Sutaco adquire produtos de artesãos com carteirinha. Assim, eles têm a possibilidade vender seus produtos em nossas lojas e em nossos eventos, o que é muito bom, principalmente se compararmos com outros programas de apoio à geração de renda. Em geral, a venda fica totalmente por conta do cidadão “empoderado”, “capacitado”, mas ou ele vende ou não vende. Nós garantimos – claro que até certo ponto – o escoamento da produção. O artesão precisa fazer o cadastro, possuir a carteirinha e ter um produto condizente com os critérios da Sutaco. São critérios bem generosos, porque um produto pode ser tradicional, de raiz, ou pode ser contemporâneo, moderno, criativo, diferenciado, ou ainda pode ser um produto que não se distingue muito nem por uma coisa nem por outra, nem é bem tradicional, nem arrojado e moderno, mas é muito bem executado e o artesão tem uma condição socioeconômica muito difícil – tudo isso a gente leva em conta. Desenvolvemos um critério de avaliação e acrescentamos pontos extras se o produto for feito a partir de reciclagem, material pós-consumo, sobra de produção industrial, restos como bagaço, cascas, pseudocaule de bananeira. Também há pontos extras se for feito por indígenas, quilombolas, comunidades ribeirinhas, assentados rurais, cooperativas populares, usuários do Sistema de Saúde Mental, usuários do Sistema de Assistência Social, participantes de programas de pós-ocupação de moradia popular, presidiários ou egressos. Há uma lista de pessoas em situação especialmente vulnerável que têm preferência no momento em que a Sutaco compra os produtos.
Mais ainda, a partir do ano passado, o artesão cadastrado pode se inscrever num edital e se candidatar a dar aulas e oficinas de artesanato contratado pela Sutaco. Abrimos um edital e as pessoas enviam currículo, comprovação de experiência e um projeto de curso. Os que forem aprovados ficam à disposição de qualquer instituição que quiser contratar. A Sutaco paga a hora-aula do artesão e entidade parceira que solicitou o curso providencia um lugar para as aulas, divulga, monta a turma – só mandamos professores para grupos – e fornece material. Muitas vezes, as entidades, prefeituras, associações, já pedem o curso conforme o material que já dispõem: “Recebemos aqui muita doação de retalho de tecido”, ou “Temos muito bagaço de cana”, “Temos palha de milho”. Normalmente, providenciar o material é o de menos.

Para a Sutaco, artesanato é um meio de geração de renda e inclusão social. Quais as vantagens dessa atividade como ferramenta para o desenvolvimento social e econômico?
Gosto muito de pensar na escala humana. O artesanato pode até ser feito a partir de uma matéria-prima que atravessou o mundo de navio, mas isso é a exceção, não é o comum. Normalmente, o artesanato é feito daquilo que está muito próximo; é o barro dali onde as pessoas vivem, são partes da vegetação local, restos de produção agrícola, restos de produção industrial. Isso, para mim, é antigo e moderno. Às vezes, o mais moderno é o mais antigo. Veja o reaproveitamento, por exemplo. O descartável foi o advento da modernidade, a liberdade da mulher moderna – que não precisa mais lavar fraldas –, e, aos poucos, percebemos que não é bem assim, que tudo o que dá para reaproveitar deve ser reaproveitado. Nesse ponto, artesanato é o antigo e o super moderno.
Além disso, o volume de produção não exige que se saia em busca de novos mercados imensos, embora almejemos expandir o mercado de artesanato, porque queremos que o artesão seja reconhecido no trabalho dele, que possa ganhar dinheiro com aquilo que ele faz e que as pessoas tenham a possibilidade de ter artesanato na sua vida, porque artesanato é beleza. Artesanato pode ser funcional ou não, pode ser simplesmente decorativo, agradável de olhar. É um produto que faz bem a quem produz, porque muitas vezes é a tradução, se não da história, da raiz, da tradição, da cultura local, no mínimo de uma habilidade, de um saber fazer, de um olhar, de um gosto, e é bom também para quem consome. E tudo dentro dessa medida mais próxima da escala natural das coisas, não essa escala industrial, mundial, planetária.
No fim das contas, o artesanato como geração de renda traz até uma dificuldade em relação ao estabelecimento do preço do trabalho. Muitas vezes, a matéria-prima não foi adquirida, foi obtida de alguma outra forma. Tem artesã que entra no brejo para pegar taboa – com plano de manejo, que antes ela nem sabia que precisava ter, com autorização do Ibama. Quanto custa essa matéria-prima? Como se calcula o preço? Não dá para dizer que é grátis; ela precisa ter uma bota até o joelho, toma picada de cobra, de aranha, e aí? E o tempo que leva para pegar, cortar, secar, trançar? Como parece que o produto veio a custo zero, ou que o único custo foi o tempo e o trabalho dispendido, é difícil colocar um preço. Mas isso é também uma vantagem do artesanato: você consegue produzir a partir de matérias pelas quais você não precisou desembolsar dinheiro.
Outro problema em relação ao preço é que é difícil dar o valor que o produto artesanal merece: pelo significado simbólico, pelo trabalho que deu, pelo quanto aquilo é único – único nos seus pequenos defeitos, inclusive. Muitas vezes, as pessoas comparam com o preço de um produto massificado: “Por que vou pagar isso nesse vaso, se eu tenho um quase igual custando muito menos?”. Isso é inerente, não vejo como resolver. Colocar o preço é uma coisa que vamos aprendendo com o tempo, nós e os artesãos. Mas é difícil evitar a comparação com o preço do produto industrializado. Eu não vou baratear o artesanato, esse é que é o ponto, essa é que é a dificuldade. Não posso competir barateando artesanato. Tenho que fazer as pessoas perceberem o valor que isso tem e os motivos daquele preço maior do que o do produto que veio da China.
É preciso educar o mercado?
Com certeza.

Ao incentivar a produção de artesanato por pessoas em situação de vulnerabilidade – usuários do Sistema de Saúde Mental, usuários do Sistema de Assistência Social, presidiários ou egressos etc. – com o objetivo de inseri-los socialmente, a Sutaco parece defender a ideia de que o saber fazer artesanal está ao alcance de todos. Nesse sentido, é sintomático que a Sutaco esteja vinculada à Secretaria do Emprego e Relações de Trabalho – SERT e não à Secretaria de Cultura, por exemplo. Assim, ao contrário da “Arte”, o artesanato prescindiria do dom. Isso não contribui na perpetuação do preconceito que hierarquiza atividades como arte e artesanato, atribuindo ao artesanato um lugar inferior?

É um risco e temos que ficar atentos para que isso não aconteça. Às vezes, em outras cidades com as quais mantemos relação, ou mesmo outros estados, o artesanato está subordinado a um órgão de cultura. Aí o recorte seria completamente diferente, porque muita coisa que nos interessa, como geração de renda, não interessaria, de modo algum, a uma pasta de cultura. Mas a condição socioeconômica é apenas um dos critérios que pode servir para desempate, vamos dizer assim. É diferente de um critério de cota, por exemplo. Pessoas nessas condições terão um ponto extra se precisarmos definir uma prioridade de compra, pois nossos recursos finitos e não podemos comprar tudo ao mesmo tempo. Mas em nenhum momento isso dispensa criatividade, qualidade de acabamento, ou um componente histórico, tradicional, de identidade. Tivemos o maior cuidado na hora de pensar essas notas, tanto que algumas são 1 ou 2 – sim ou não –, e outras tem uma escala de 1 a 3 ou 1 a 5, de modo que alguém que não vá bem nos quesitos de qualidade do produto não vai ter seu produto comprado e vendido pela Sutaco só porque tem uma condição difícil. Nesse caso, iremos orientar a pessoa informando que a Sutaco não poderá vender. É o bendito pano de prato. As pessoas vêm à loja da Sutaco e comentam: “Ah, é isso? Pensei que era tipo ‘pano de prato’”. Mas claro que um pano de prato pode ter o seu valor como trabalho manual dependendo do barrado que for feito nele, da aplicação de tecido, pode ser super-representativo da cidadezinha onde aquilo foi produzido. Você pode olhar um pano de prato e dizer: “Isso é de Óbitos, interior de Portugal”, ou “Isso é de Piracicaba, eu conheço essa igrejinha”. Precisamos ter esse cuidado. Quando vim para cá, sugeri que o cerimonial do governo adquirisse produtos da Sutaco para presentear visitantes estrangeiros. Eles resistiram até que eu fosse lá levar um presente. Levei uma peça de cerâmica, e eles: “Ah, é disso que você está falando!”. Já temos a distinção “trabalhos manuais” e “artesanato”. O Renan Novais, nosso ouvidor, que tem décadas de Sutaco, costuma resumir muito facilmente: trabalho manual tem uma receita, uma receita da revista, uma receita da televisão; o artesanato não tem receita, não tem um “faça isso, depois faça aquilo”. Isso não quer dizer que os artesãos sejam autodidatas. O modo de amassar e moldar o barro, por exemplo, tem um aprendizado, mas é outro tipo de transferência de conhecimento.
Apenas para responder sua pergunta de maneira mais direta: “parece até que qualquer um é capaz de fazer artesanato”. Qualquer um pode ser capaz de fazer artesanato, nós não sabemos; assim como qualquer um pode ser capaz de fazer arte e nós não sabemos. Antonio Bispo do Rosário, por exemplo, nem ele sabia. De repente teve o estalo com a estagiária de psicologia e começou a fazer arte; nem sei se ele sabe o que fez. Tanto artistas quanto artesãos podem ser pessoas que não tenham alta escolaridade, que sequer tem um repertório vasto de referências históricas ou estéticas. Por outro lado, podemos tentar abrir o horizonte de alguém que tem uma habilidade manual para outras referências culturais, de modo que aquela capacidade inicial possa vir a ser um artesanato mais distinto.

Como herança da escravidão, existe um velho preconceito que associa a elite ao trabalho intelectual (saber) e as classes subalternas ao trabalho braçal (fazer). Nesse sentido, uma série de projetos de inclusão social voltados à população de baixa renda envolve música, percussão, esportes e trabalhos manuais. Em que medida a ideia de incluir a mão-de-obra marginalizada no mercado de trabalho por meio do artesanato está baseada nesse preconceito?
Isso dá muita briga entre o pessoal que fomenta a produção artesanal em órgãos de governo ou em organizações não governamentais. Tem gente que tem pavor dessa associação entre artesanato e população carente, artesanato e geração renda na periferia. E é uma coisa muito simples: não é uma equação matemática do tipo “artesanato = pobreza”, e nem o contrário, “a melhor saída para a pobreza é o artesanato ou o trabalho manual por falta de uma aspiração a alguma coisa melhor”. O artesanato pode ser produzido e é produzido por pessoas das várias camadas da sociedade. E mesmo que fosse produzido só pelos pobres, mesmo se as elites intelectuais e financeiras não tivessem nenhum interesse em fazer artesanato, nem por isso valeria menos. Há atividades que são características das camadas mais populares da sociedade e nem por isso têm menos valor.
Já discuti muito o fato de que os projetos sociais na periferia costumam dar um tambor na mão das pessoas e eles saem batendo tambor quando deveriam estar fazendo faculdade de Direto. Se quiserem fazer faculdade de Direito, eles têm que ter toda a possibilidade de entrar numa faculdade de Direito, mas música não tem valor? Só tem valor se for sinfônica? Batucada não é importante? E o esporte, não tem valor? O problema é sempre o reducionismo: se alguém achar que pobre só dá para esporte, música ou trabalhos manuais, estará sendo injusto e excludente com os pobres. Eles têm que poder estudar o que bem entenderem. Mas também discordo de alguém que diga que cultura e esporte não têm valor nenhum, que o que tem valor mesmo é diploma de doutor.

O antropólogo Ricardo Gomes Lima afirma que diversas pesquisas demonstram que “uma das características da produção artesanal (...) reside exatamente na integração da atividade manual com a intelectual”.
E é um pensamento aparentemente compassivo – “os pobres vão ficar fazendo cultura e esporte quando deveriam estar estudando” –, mas não deixa de ser um pensamento elitista preconceituoso. Elitista no mau sentido, de que só tem valor a produção acadêmica, intelectual. Tenho certeza que não. Eu não quero que os artesãos permaneçam analfabetos, se for esse o caso deles, nem analfabetos digitais. Espero que eles saibam usar a internet sem descaracterizar o que eles fazem. Mas não vou achar que uma pessoa vale menos porque só estudou até a oitava série, quando ela produz uma coisa tão maravilhosa e encantadora. Não é paternalismo, “Deixa ele ali daquele jeito”, nem glamorização da pobreza, “A pobreza é bonita”, “A baixa escolaridade é bonita”, não acho isso. Mas também não acho que só tem valor na sociedade quem fez pós-doc.

Durante muito tempo, acreditou-se que a industrialização iria acabar com o artesanato. Entretanto, o site da Sutaco informa que “Desde sua fundação em 1970, a Sutaco cadastrou mais de 70 mil artesãos – e esse número aumenta todos os dias”. O lugar do artesanato na sociedade contemporânea está se expandindo?
Eu acredito que sim. Até certo ponto, pode parecer que o objeto artesanal e o objeto industrial competem um com a outro, mas, na verdade, eles mais se contrapõem do que competem, eles não estão disputando o mesmo espaço, o mesmo bolso, o mesmo mercado.
Depois de toda essa discussão sobre o que é pobre, o que é da elite, é curioso notar que a elite financeira adora um produto rústico. A CasaCor está cheia de produtos artesanais, tradicionais, de raiz. Isso é um sinal de que há um ponto de esgotamento em todas as coisas, um momento em que as pessoas se esgotam da produção idêntica, em série. Cansa! No começo é bom, porque é barato, porque todo mundo tem e eu também quero, mas chega uma hora em que isso se dilui na paisagem e outra coisa chama a sua atenção e desperta o seu desejo.
Quem não é sensibilizado pelo belo tem algum problema. Até os animais seduzem uns aos outros com penas coloridas. O ser humano tem uma sensibilidade para a beleza e o artesanato é isso. Seja um artesanato tradicional, seja um trabalho manual bem feitinho, é belo, não é só útil. A não ser que alguém esteja muito mal consigo, numa condição muito depauperada de espírito, o belo sempre vai ser sedutor.

Quais as principais características do artesanato paulista?
É difícil falar em uma linguagem, e por isso mesmo, isto é São Paulo. Temos aqui uma discussão muito acirrada sobre o artesanato típico paulista. No decreto que regulamentou a Sutaco, falava-se no benefício fiscal para o “artesanato típico regional”. Então, tem gente que acha que deveríamos ser muito rigorosos e excludentes em relação a uma boa parte dos trabalhos artesanais que cadastramos e adquirimos para vender. E eu questiono: “Não é tipicamente paulista ter elementos da cultura japonesa, árabe, negra, européia?”. Em alguns lugares, o traço da cultura indígena vai ser predominante; em outros, será o traço da cultura negra. São Paulo é exatamente a mistura disso tudo: a maior cidade nordestina fora do nordeste, a maior cidade japonesa fora do Japão, a maior cidade boliviana fora da Bolívia. Então, é claro que isso se reflete no artesanato. Em alguns lugares, existe a produção quase autóctone, não influenciada por movimentos culturais recentes – foram influênciados pelo contato do negro com o índio e com o português. Então, pode haver uma modelagem em barro, uma técnica indígena, acrescida de elementos da cultura negra de algum vilarejo do interior da África, resultando num santo cristão. Isso é o artesanato de São Paulo.
Há algumas coisas bem típicas, características de alguma região, como esse artesanato do vale do Ribeira, dos quilombos, da região de Taubaté, do vale do Paraíba. Mas o mais comum é que você tenha dificuldade de dizer de que lugar aquilo veio porque o estado é muito misturado. Temos peças em cerâmica com técnicas originalmente japonesas que, aos poucos, vão ganhando contornos ou ilustrações mais brasileiras e mais paulistas. Mas, a não ser que sejam as figuras de Taubaté, que se alguém já conhecer sabe identificar, as pessoas não costumam reconhecer o artesanato paulista. Quando montamos um estande de São Paulo nas feiras, mesmo que tenha peças contemporâneas – temos muitas esculturas feitas de restos de metal reaproveitado, por exemplo –, com elementos urbanos, as pessoas perguntam: “Vocês são de onde?”.
Há ainda o artesanato caiçara, do litoral, que tem uma característica regional muito marcante. Você olha e pode errar: “Isso aí é de Iguape ou de Caraguá?”, mas é possível identificar que é da cultura caiçara.
Pela falta de técnicas e materiais mais marcadamente paulistas, procuramos levar aos nossos artesãos a ideia de inserir na forma ou na ilustração de seus trabalhos algum elemento local. Por exemplo, em uma ecobag. Para mim, é muito bom olhar para uma ecobag e saber que ela é de Bertioga e não de Presidente Prudente. Como se faz isso? É uma sacola, de um jeito ou de outro, mas a de Bertioga pode ter milhões de ilustrações bordadas, pintadas, aplicadas, trançadas do forte de Bertioga, que só tem lá. Eu não quero que escrevam “lembrança de Bertioga”, mas quero que as pessoas pensem cada vez mais em se fazer representar no artesanato naquilo que elas têm de típico delas. Pode não ser uma tipicidade histórica, original, do século retrasado, mas o que é típico do lugar agora. No ABC, por exemplo, eu faria artesanato com perfil de fábrica; o ABC é isso.
Quais as maiores dificuldade do artesão paulista e como o poder público pode atuar em seu apoio?
Um dos problemas é a organização da produção. É onde pretendemos atuar mais agora, sem descaracterizar, sem fazer com que cada artesão vire um microempresário, ou um agente de divulgação de si mesmo, mas ele precisa ter o mínimo de organização para saber quanto gasta, para saber se é capaz de atender uma determinada encomenda. Às vezes, o artesão pode receber uma grande encomenda por um preço final muito atraente, que vai fazer com que seu ganho imediato aumente bastante, mas ele não se dá conta de que o preço individual de cada peça inviabiliza a produção. E não apenas isso, pode ser que o preço seja até vantajoso, mas como ele nunca calculou isso direito, perde o prazo para entregar a encomenda; ou ele se mata para entregar aquilo no prazo, vira noites em claro e termina totalmente esgotado; ou então acaba fazendo um produto de menor qualidade. Os artesãos precisam conhecer o processo produtivo como um todo, saber prever revezes, porque quando ele não tem prazo para entregar uma encomenda, se choveu mais ou menos, se vai demorar um pouco mais para ter o coco seco ou o barro em condições, não faz muita diferença. Mas se ele se compromete com um prazo, ele tem que saber lidar com isso. Ou ele pode não se comprometer, ter uma postura mais de artista: “Olha, não trabalho dessa maneira”.
Outro ponto é justamente a ampliação de repertório, de referências, para que as pessoas façam produtos melhores e mais atraentes do ponto de vista do mercado, e mais recompensadores do ponto de vista da auto-estima. Como o trabalho manual hoje é uma febre – há revistas, DVDs, sites, programas de televisão, canais de televisão – é muito fácil aprender a fazer artesanato, aprender a fazer trabalhos manuais, mas é muito difícil fazer um trabalho diferenciado. Temos agora cursos de técnica artesanal, mas queremos ampliar isso. Por enquanto, fazemos uma consultoria informal, visitamos os grupos, orientamos em relação ao produto, em relação à organização, mas quero que a Sutaco tenha uma metodologia básica condizente com as necessidades de cada grupo. Nós, o quadro de pessoal da Sutaco, iremos fazer um curso para nos aprofundarmos nisso. Em seguida, os artesãos ligados à Sutaco que dão aulas de técnicas artesanais também vão passar por esse treinamento. Finalmente, pretendemos incubar um empreendimento para aprender a fazer. Primeiro seremos “estagiários” de uma incubação para que possamos ser incubadores também, coisa que a Sutaco, hoje, não é.
Como o design pode contribuir na ampliação de referências? A Sutaco tem considerado a parceria entre designers e artesãos em seus projetos?
Acabo traindo um preconceito meu por não ter usado a palavra design até aqui. Talvez porque não tenha boa tradução em português. Eu me censuro, me policio para não dizer design, porque dá impressão de alguma trazida de fora, entregue ao artesão, ensinada para o artesão. Claro, design faz toda a diferença. Precisamos buscar referências, elementos locais, identidade, mas como isso se traduz na ilustração de sacola, na aplicação em camiseta, num bordado, numa peça moldada em barro ou numa peça forjada a ferro? Isso é design. O elemento da identidade pode ser uma espécie endêmica de tartaruga; tudo bem, mas não se vai simplesmente moldar tartarugas, fazer representações exatas da tartaruga. Como é que se estiliza a tartaruga? Como se identifica uma tartaruga numa forma de metal quase abstrata? O design é um elemento de comunicação entre essas referências culturais e de identidade e sua transformação em um produto único, belo, atraente. Quando falamos nessa ampliação de referências, de repertório, o design é elementar. E, às vezes, quando o produto é importante historicamente para determinada comunidade, não há necessidade de incorporar novos elementos de design na peça, mas na loja, na exposição, na embalagem, na etiqueta.
Uma peça com belo design salta aos olhos de um jeito que mesmo o artesão menos familiarizado com milhões de movimentos culturais, artísticos etc., desenvolve uma relação instantânea de olhar, reconhecer e ser impactado por aquilo. O design é também o não verbal. Não é apenas o texto, a explicação, a teoria, a história contada, é um gesto materializado, um movimento corporificado. O design tem um pouco disso, de ser muito moderno, mas sempre comunicar com alguma coisa inexplicável.

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