segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Rua das Crianças, parte 1

Samuel, 3 anos. Três! Pensei que era uma criança miúda de cinco, de tanto que ele fala, contesta, pergunta, observa, conta, elabora.

- Soninha, pode nadar no rio?

CADA frase dele começa com "Soninha, ...". Foram umas 200 frases nas 5 horas em que passamos juntos.

- Naquele rio da sua casa não pode, porque ele é muito sujo.

Breve discussão no carro sobre "sujo de que". As meninas mais velhas, moradoras como ele da Rua das Crianças, Jardim Pantanal, discorrem sobre lama no fundo, xixi, cocô.

- Soninha, se o rio fosse limpo, pode nadar?
- Depende. Se ele for fundo não, porque pode morrer afogado.
- Por que morre afogado?

Porque afunda, fica com o pé preso na lama, engole água, água suja... Enche o pulmão, não consegue respirar.

- Mas pode gritar para alguém tirar você de lá.

Pode não ouvir, pode não dar tempo, pode não ter ninguém por perto, pode não conseguir gritar, pode não conseguir tirar.

- Soninha, se o rio fosse limpo e fosse raso, pode nadar?
- Sozinho, não. Se tiver um adulto por perto, pode.
- Por que um adulto?

Incrível, o Samuel. Que ao fim conseguiu reunir todas as condições para poder nadar no rio.

***
- Esse ano vai ter enchente.
- TOMARA que tenha enchente (Joyce, 14 anos).
- Você tá LOUCA? (Juliana, a irmã de 17).
- Eu não, tomara que encha logo porque só assim tem apartamento. Não aguento mais esse lugar. Ninguém merece. Não vejo a hora de ir embora daqui.

***
O Pantanal é o fim do mundo. 40 km de distância da Pompeia, no ponto cardeal oposto (Poente). Mas não é só a quilometragem; o fim da Rua das Crianças já é o fim do mundo se comparado à avenida mais próxima.

Parece que eu estou de volta à Vila Operária no começo dos anos 70, o bairro caiçara no fundão de Peruíbe, perto da linha do trem. Taperas de madeira, ruas de areia e água, crianças, pobreza. Mas é São Paulo, SP, Brasil, século XXI.

Corintiano pra todo lado rs. UM corajoso menino pequeno com camisa do São Paulo. Muito menino pequeno, muito.

***
Chegar até o Jardim Helena é fácil. Marginal, Trabalhadores, passa a entrada para Cumbica, passa o acesso à Jacu Pêssego/Anchieta/Imigrantes, segue para São Miguel - a segunda, entrada, que também dá acesso a Pimentas. Logo sai pra esquerda, direita na rua larga com nome de japonês, esquerda, direita, esquerda, acabou o asfalto. Aí é que complica, porque as ruas ("ruas") são todas muito parecidas. Passei do ponto, fui parar do lado de lá da curva do rio. Fiquei esperando uma porca passar com dois filhotinhos atrás. No fim achei a rua (pombas, se eu soubesse que chama "Das Crianças", o GPS teria me informado. Placa com o nome dela não ia ter mesmo, mas o Iphone é mais esperto e confiável que o poder público).

***
Tenso. A menina com quem eu tinha combinado o passeio sai de dentro de casa aos prantos, chama uma vizinha pra ajudar - "Corre, tá quebrando tudo lá dentro". Logo sai uma mulher fora de si girando uma vassoura como se fosse uma boleadeira e a menina diz "sai com o carro, sai, vai pra lá, para lá na frente".

Parei "uma quadra" adiante. Cinco minutos depois a mulher vem pela rua, andando pesadamente, na direção do meu carro. Fiquei onde estava, janela aberta. Sem vassoura, no máximo me daria uma bofetada. Já ia passando sem se deter quando deu um passo pra trás. "Que susto!" (Assustei de verdade, e já funcionou antes para surpreender alguém que pretendia me agredir). A voz enrolada pediu desculpas. "Claro que desculpo", disse beeem suavemente. "Tem miliano que eu moro aqui, você entrou, você vai sair, quero ver quem não vai deixar você sair. Você me desculpa. Me desculpa? Eu não bebo não, viu".

Frio na barriga. Ô saco, será que os bandidos estão implicando com a minha presença (da outra vez que saí com as meninas, elas ficaram com medo de chegar em casa depois do "toque de recolher")? Costumo tretar com bandido nessas situações, mas veja bem, prefiro não.

No fim era "só", somente, apenas um problema de porre da mãe, mesmo. "Ela sempre fica assim".

***
A mãe apareceu duas vezes na conversa durante o passeio.

"Amanhã ela tem consulta" - com uma filha com deficiência intelectual, peleja para conseguir uma pensão para a menina. "Desse jeito ela vai perder a consulta", inquietaram-se as irmãs. "Antes não era assim. Ela podia ficar bebendo atééé de madrugada que no dia seguinte, a hora que precisava levantar ela levantava", contaram com orgulho.

A segunda vez foi quando a mãe da única menina que não é da mesma família, nossa colega de incursão/ excursão pelas luzinhas de Natal do Ibirapuera, ligou brava pra saber que horas eu ia levar as meninas para casa. "Eu tenho que trabalhar amanhã cedo. Ela saiu e nem me pediu porque eu não tava em casa. É só dessa vez que ela vai, da próxima não vai não".

Fiquei preocupada, as meninas me tranquilizaram. "Ih, não liga, minha mãe é chata assim mesmo". "Toda mãe é um pouco chata. Eu sou...". "Não, a senhora não tá entendendo. Ela é muito chata. Mas no fim não pega nada".

Joyce e Juliana acrescentaram: "Não se preocupa não, minha mãe falou com ela já. Minha mãe disse - "Ela é meio doidinha mas é de confiança"".

Demorei dois segundos para entender a frase. Primeiro, pensei que a mãe delas duas estava falando da mãe da outra. Depois, que as meninas estavam falando da própria mãe. No terceiro segundo, pesquei: a "meio doidinha" mas "de confiança" sou eu, uma mãe afiançou à outra.

Dei risada.

A Joyce: "Mas você é meio doidinha".

***
"Meu pai é um safado sem vergonha que não paga minha pensão".

Esse foi o Samuel.

"Um dia", contaram as mais velhas, "ele foi na feira atrás do pai. Chegou pra ele na frente de todo mundo e falou assim - "Minha mãe vai colocar você no pau porque você não paga minha pensão"."

Cuidado com o que se fala na frente do Samuel.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Talvez eu responda seu comentário com outro comentário... Melhor passar por aqui de vez em quando para ver se tem novidades para você.