quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Mais Médicos - crítica ideológica à ideologização

Alberto Dines assina no Observatório da Imprensa o artigo abaixo:

Mídia não explica, demoniza
Mais médicos, Menos ideologia

Há quase dois meses discute-se a implementação do programa “Mais Médicos” para atender as exigências dos manifestantes de junho. Vacilante, o governo foi apresentando uma sucessão de idéias incompletas que as corporações médica e acadêmica foram torpedeando implacavelmente. Com o decidido apoio da corporação jornalística.

O projeto sobrevivente e o mais consistente, apresentado pela própria presidente Dilma Rousseff em seguida às manifestações, previa a importação de médicos do exterior. Inclusive cubanos. Não era novidade: médicos desse país já prestaram serviço em diversos pontos do Brasil, com excelentes resultados.

À medida que a ideia se cristalizava, aumentava a histeria anticubana que se estendia a candidatos de outros países, especialmente Portugal e Espanha.

Acusações primárias se alternavam: ora dizia-se que os cubanos viriam como espiões ou agentes provocadores, ora que chegariam aqui na condição de escravos (ganhando salários irrisórios enquanto o governo de Havana ficaria com a parte do leão dos 10 mil reais mensais pagos pelo governo brasileiro). Alegou-se que cláusulas especiais foram impostas para evitar que os cubanos pedissem asilo político (por isso vinham sozinhos, sem a família). Nenhum editor deu-se ao trabalho de esclarecer, explicar vantagens e desvantagens.

Gestos e opções

Nos últimos dias, em desespero de causa, celebrados opinionistas acusaram os irmãos Castro de converter seus médicos em simples commodities, fonte de divisas para financiar um país falido. Argumento pueril, enganoso: commodities são bens em estado bruto, médicos são bens com alto valor agregado. A Índia estimula a saída dos seus cientistas e especialistas em informática de olho no retorno que trarão ao país; o mesmo acontece com Israel, que há décadas exporta agrônomos para os quatro cantos do mundo.
O exercício da medicina não pode ser examinado sem levar em conta o seu caráter humanitário. Levar médicos aos grotões do país – além de salvar vidas preciosas, contribuirá decisivamente para desmonetizar uma profissão que vem perdendo velozmente o seu caráter original, solidário e altruísta.

Nossa mídia embarcou de corpo e alma nessa cruzada egoísta, antissocial, fomentada primordialmente pela poderosa corporação médica, pelas empresas de ensino superior & adjacências. E isso no pós-junho, quando nas passeatas ainda reverberam referências pouco airosas à insensibilidade de jornais e jornalistas.

Acusa-se o PT de aparelhar o governo, porém a mesma obsessão ideológica domina os mais instintivos gestos e opções da grande e média imprensa brasileira.

Um jornalista que ouve o coração

Neste ambiente ríspido, desprovido de solidariedade, a coluna de Ricardo Noblat (segunda-feira, 26/8, O Globo, pág. 2) funciona como um alento e, talvez, como um divisor de águas.

O experiente repórter, editor e agora bem-sucedido blogueiro não se deixou enredar pelas armadilhas ideológicas, preferiu entregar-se aos valores morais, como se fazia antigamente quando os jornalistas naquelas redações barulhentas ouviam as batidas do coração e a pressão da consciência.

“Só vejo vantagens” – apesar do pragmatismo e objetividade do título, trata-se de uma calorosa convocação para que os jornalistas deixem as trincheiras partidárias que tanto prejudicam os seus dotes narrativos e se entreguem a devoções mais profundas, essenciais.

“Mais Médicos” é um programa da saúde pública. “Mais humanidade” pode ser um projeto de renovação jornalística.


***
Meu comentário:

A mídia não apura mesmo quase nada - colhe declarações daqui e dali e deixa que o leitor ou espectador conclua por si. É desolador. Às vezes escolhe deliberadamente um lado; às vezes é mais sutil e transforma a palavra do outro em "Fulano nega", "Fulano minimiza".

Este artigo tem o mérito de explicitar seu lado: a favor do Programa Mais Médicos, que o autor chamou de "O projeto (...) mais consistente" entre os cogitados pelo governo (embora não mencione os demais). Afirma tb "médicos de Cuba já prestaram serviço em diversos pontos do Brasil, com excelentes resultados". Não duvido! Assim como chilenos, argentinos, chineses... Nem por isso “excelentes resultados” (apenas invocados, não sei se apurados) significam que os novos profissionais não possam ser questionados.

Dines, aliás, reconheceu q houve resistência a estrangeiros de várias procedências, Europa inclusive, mas manteve a expressão "histeria anticubana" – reforçando a leitura de que toda a oposição ao programa vem de “anticubanismo”. E assegura: "Nenhum editor se deu ao trabalho de esclarecer, explicar vantagens e desvantagens". "Nenhum"?

Vi vários veículos – TV, rádios, jornais - expondo a opinião do CRM, do ministro Padilha e de usuários do sistema de Saúde, favoráveis inclusive. A opinião do CRM foi registrada como deveria ser (eu não concordo com ela). Quanto aos "esclarecimentos": simplesmente não foi possível obter a informação sobre quanto os médicos vão ganhar e quanto será destinado a OPAS e ao governo de Cuba. Os signatários do acordo não esclareceram. Daí a preocupação, histérica ou não, com a condição trabalhista desses médicos – além das condições de trabalho propriamente ditas – e o destino do dinheiro público brasileiro.

Sobre os médicos serem tratados como "produto de exportação": foi um ministro cubano quem o disse. É razoável q se faça juízo de valor dessa declaração, concordando dela ou discordando, por que não? Dines concorda com essa “exportação de cérebros”. Outros lutam contra ela (o próprio governo cubano, aliás, se queixa do “roubo de talentos” por outros países, qualificando como manobra "dos poderosos" para enfraquecer o país):

“La actualización de la política migratoria tiene en cuenta el derecho del Estado revolucionario de defenderse de los planes injerencistas y subversivos del gobierno norteamericano y sus aliados. Por tal motivo, se mantendrán medidas para preservar el capital humano creado por la Revolución, frente al robo de talentos que aplican los poderosos”. (publicado no Granma)

Ou seja, Cuba quer que seus médicos saiam sim, mas apenas para onde o governo autorizar que vão – e obtem divisas a partir do trabalho deles. Não na forma de uma porcentagem retida na forma de imposto, como em outros lugares, mas repassando apenas uma parte do que for recebido para os próprios médicos.

Isso não é “acusação primária”, é minha opinião baseada em afirmações de autoridades cubanas. Sobre Israel e a India, não faço ideia de como funciona sua política.

É verdade que boa parte da classe médica tem como prioridade a "monetização". E foi com dinheiro que o governo tentou resolver o problema, oferecendo os R$10mil por mês para os interessados no Mais Médicos. Antes disso, ofereceu bolsas de R$8mil para estudantes de medicina, no Provab (e fez propaganda dele na TV como se tivesse resolvido o problema de médicos na periferia das grandes cidades e no interior). Mesmo assim o interesse ficou bem abaixo das expectativas, por que? Porque muitos médicos, mesmo interessadíssimos no dinheiro, não querem apenas bom salário, querem boas condições. E quanto a isso, o Mais Médicos não garante nada.

Pagando salário menor para os profissionais cubanos do que o que será pago para brasileiros e outros estrangeiros, poderia usar o "excedente" com a aquisição de materiais e equipamentos - mas preferiu remeter à OPAS e ao governo de Cuba, para que alegadamente invistam na Saúde em outros páises. Os médicos são funcionários do governo de Cuba, e também por isso poderá ser difícil a relação deles com o sistema de saúde no Brasil. As normas são brasileiras; os estrangeiros cubanos não precisam, disse o ministro Padilha, se submeter a elas.

Dizer que a mídia "embarcou de corpo e alma nessa cruzada egoísta e antissocial" não é uma crítica a cobertura do tema, é uma condenação moral. É demonização... da mídia. É jogar todo mundo no mesmo balaio; é não distinguir o que a mídia apenas exibe (tanto os gritos a favor do médicos e do comunismo contra os gritos contra os médicos e o comunismo), o que não explica, o que distorce, o que defende.
Ricardo Noblat é um colunista que, como todos os outros, expressa uma opinião. Não tem compromisso com a apuração dos fatos, como um repórter e um editor. Assina um texto pessoal e se responsabiliza individualmente por ele. Não é "cobertura jornalística". Outros colunistas igualmente deram sua opinião – se for contra o programa, não pode?

Dizer que Noblat "se entregou aos valores morais" e "ouviu as batidas do coração e a pressão da consciência" porque aprovou o programa equivale a dizer que os demais foram imorais e sofreram alguma pressão que não foi a da consciência.

O artigo do Alberto Dines é ideologizado e é partidarizado. Demoniza a "grande e média imprensa". Demoniza, desmoraliza e "imoraliza" as opiniões negativas sobre o Programa Mais Médicos, como se os que o criticam fossem todos xenófobos, racistas, anticomunistas, vendidos à corporação médica etc.

Desqualificar toda crítica é a posição de um governo que não admite oposição e vê "tentativa de golpe" e "subversão" em tudo... E aquele que condena a mídia não admitiu uma, uma ressalva sequer a essa nova promessa do governo.

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