segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Se fosse na Vila...

Ou: Por que pode ser difícil aplicar a Lei Maria da Penha.

Gritos, correria. Um homem dobrando a esquina, um homem com um tijolo na mão atrás do primeiro, uma menina desesperada atrás. Briga? Assalto. Os vizinhos saindo às janelas se olhavam desolados e aflitos.

Minutos depois, aplausos e assobios vindos do prédio do outro lado da rua: pegaram. A menina chorava de sacudir os ombros, muito nervosa. Não queria que fizessem mal ao ladrão.

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Aconteceu em uma rua tranquila da Pompeia no domingo de manhã. A menina estava na porta do café onde trabalha, evitando usar o celular na rua. Mas o telefone tocou, ela pegou para atender e foi o que bastou.

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“Ele é loirinho, de olho claro”. Por alguma razão, isso parecia fazer dele um ladrão ainda mais estúpido. Como se, sei lá, estivesse deixando escapar a oportunidade de fazer algo muito melhor da vida, coisa que não esperariam de um escurinho, talvez.

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A menina chorava muito, os moradores a acolhiam. Os trabalhadores de uma casa em reforma, que a tinham acudido e perseguido o rapaz, perguntavam, atônitos: “Se você queria deixar ele ir embora, por que passou aqui gritando pega ladrão”?

Quem o alcançou foi o motorista de um carro vermelho; carro meio velho, que a gente já não sabia, naquela corrida maluca, se era da “polícia” ou do ladrão. O garoto fez menção de puxar uma arma, tomou logo um safanão. O perseguidor, contendo a vontade de dar mais alguns; fez o certo: ligou 190 e o levou no carro até a obra, onde aguardariam a viatura.

A menina ficou triste e confusa, “É só um garoto. Eu também moro na quebrada, sei como é”. Conversando e se acalmando, concordou que ele não podia ficar à vontade para continuar causando mal a outras pessoas.

“Quantos anos você tem, arrombado?”, perguntou um dos trabalhadores da obra. “16”. Os colegas pedreiros balançaram a cabeça: “Amanhã já tá na rua de novo”.

“Se fosse lá na Vila...”, disse um deles. Perguntei qual vila. “Penteado. Tava aqui sossegado assim não”. Outro balançou a cabeça. “Ah, não mesmo”.

A polícia não seria incomodada.

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Os PMs chegaram, a menina foi com eles fazer o Boletim de Ocorrência. Um dos policiais respondeu que ela poderia sim acompanhar os rumos do processo, saber o que seria do rapaz.

Pedi o número do seu zap para depois saber se tinha ficado bem. Ela precisou me ligar, não lembrava o próprio número – celular recém-adquirido, o anterior tinha sido roubado. “Você tem como comprovar que esse é seu?”, perguntou a policial. “Sim, tenho a caixa, tenho a nota”.


(Era só o que faltava).

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Sofri uma tentativa de assalto em 2009, quando era Subprefeita da Lapa. O rapaz me seguiu em uma rua deserta e escura, me ultrapassou e apontou uma faca de açougueiro: “Celular”. Debati, argumentei, consegui “comprar” meu celular de volta por R$30.

Algumas semanas depois, ele foi encontrado no mesmo lugar, no mesmo horário, com a mesma faca, na mesma tocaia. Ainda assim, fiquei com medo que fosse a pessoa errada. Outras semanas se passaram e fui chamada ao Fórum Criminal. Lá estava o rapaz, que tinha ficado detido aguardando o julgamento. Calça cáqui, camisa branca, cabeça raspada, mãos algemadas atrás do corpo. Estava tudo bem comigo, eu só tinha perdido 30 reais. E passado um medo do cacete, mas já fazia tanto tempo...

Entende? Eu me sentia culpada por aquele rapaz preso. Depois a Justiça me informou que ele tinha sido condenado a três anos em regime fechado. Putz. Será que era caso pra tanto?

“Sonia, ele não era primário. Ele tinha uma faca. Ele assaltou outras pessoas no Terminal Lapa desse mesmo jeito. Duas senhorinhas, inclusive. Essas mulheres ficaram com medo pra vida inteira”. A Lylian levantou a capivara do moço para me “consolar”.

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Lembrei da história, contei pra moça. É o certo, chama a polícia, cumpre o pacto social: o que ele fez não é certo, tem de haver sanção. "Na Vila Penteado ele teria levado um cacete por roubar uma mocinha". Se aparecesse polícia na quebrada atrás dele por causa de um celular, cacete em dobro pra deixar de ser besta. Nosso papel é acionar o sistema, fiscalizar o sistema, insistir para o sistema funcionar.

Mais tarde ela mandou um zap: ele era fichado e estava em posse de uma boa quantia em dinheiro. Acho que foi pra casa mais aliviada.

***

Um rapaz foi preso “por minha causa”, o outro “por causa dela”. Claro que não, a causa foi eles mesmos, mas é estranho.

Enfim, o subtítulo: entendem agora por que pode ser tão difícil aplicar a parte punitiva da Lei Maria da Penha? Às vezes não queremos “mal” sequer a um ladrãozinho; “se ele ao menos tomasse um susto e aprendesse”, desejamos... Não temos certeza se cadeia é bem o caso; se cadeia vai “dar jeito” na vida dele ou se é lá que vai desandar de vez.

Imagine quando é alguém a quem um dia a mulher quis bem... Alguém a quem ela amou.

Né fácil não, gente.

Precisamos enfatizar os outros caminhos e saídas para mulheres vítimas de violência doméstica, porque a via policial pode ser muito difícil para muitas delas.

“Peçam ajuda”, “peçam apoio”, precisamos dizer a elas. "Bem antes de ser um caso de polícia; para que não chegue a ser caso de polícia". (Mas se precisar, CHAME A POLICIA).

“Ofereçam ajuda”, “não neguem ajuda” (“não julguem, não condenem, não desencorajem”), precisamos dizer a todas as pessoas que conhecem uma mulher que possivelmente esteja sendo vítima de algum tipo de violência. Para que a opressão finde antes de ser caso de polícia.

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(Se isto fosse uma coluna de jornal, estaria assinado “Soninha Francine, vereadora pelo Cidadania em São Paulo, é relatora da CPI da Violência Contra a Mulher”).

 

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