domingo, 12 de abril de 2009

Uma "lei idiota" que não existe - cont.

[Segue a coluna do Gullar]

“Pois bem, aquela campanha, que visava salvar os doentes de "repressão burguesa", resultou numa lei que praticamente acabou com os hospitais psiquiátricos, mantidos pelo governo. Em seu lugar, instituiu-se o tratamento ambulatorial (hospital-dia), que só resulta para os casos menos graves, enquanto os mais graves, que necessitam de internação, não têm quem os atenda. As famílias de posses continuam a por seus doentes em clínicas particulares, enquanto as pobres não têm onde interná-los. Os doentes terminam nas ruas como mendigos, dormindo sob viadutos”.

***
Vamos ao texto da lei? É a 10216 de 2001 (veja aqui), que “Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental”.

Alguns destaques:

Art. 1o Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, de que trata esta Lei, são assegurados sem qualquer forma de discriminação (...)

Art. 2o (...)
Parágrafo único. São direitos da pessoa portadora de transtorno mental:
I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades;
II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade;
(...)
V - ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária; [grifo meu]
(...)

VIII - ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis;
IX - ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.
(...)

Art. 4o A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.
[Mas pode ser indicada, se ainda restava alguma dúvida!]
(...)
§ 2o O tratamento em regime de internação será estruturado de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros.
§ 3o É vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares, ou seja, aquelas desprovidas dos recursos mencionados no § 2o e que não assegurem aos pacientes os direitos enumerados no parágrafo único do art. 2o.

Art. 5o O paciente há longo tempo hospitalizado ou para o qual se caracterize situação de grave dependência institucional, decorrente de seu quadro clínico ou de ausência de suporte social, será objeto de política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida, sob responsabilidade da autoridade sanitária competente e supervisão de instância a ser definida pelo Poder Executivo, assegurada a continuidade do tratamento, quando necessário.

Art. 6o A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos.
Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica:
I - internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário;
II - internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e
III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça.
(...)

Art. 8o A internação voluntária ou involuntária somente será autorizada por médico devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina - CRM do Estado onde se localize o estabelecimento.
§ 1o A internação psiquiátrica involuntária deverá, no prazo de setenta e duas horas, ser comunicada ao Ministério Público Estadual pelo responsável técnico do estabelecimento no qual tenha ocorrido, devendo esse mesmo procedimento ser adotado quando da respectiva alta.
§ 2o O término da internação involuntária dar-se-á por solicitação escrita do familiar, ou responsável legal, ou quando estabelecido pelo especialista responsável pelo tratamento.

Art. 9o A internação compulsória é determinada, de acordo com a legislação vigente, pelo juiz competente, que levará em conta as condições de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e funcionários.
(...)

***
Portanto, ao contrário do que imagina Ferreira Gullar, a “lei Paulo Delgado”, como ela também é conhecida, não extinguiu a possibilidade de internação de doentes mentais, apenas estabeleceu firmemente as alternativas à internação e os direitos dos pacientes em caso de internação.

Se faltam leitos para internação – e faltam – a culpa não é da lei! Faltam leitos de todos os tipos no Sistema Público de Saúde (e, possivelmente, também na rede privada). Aliás, faltam vagas também nas clínicas e hospitais-dia (felizmente, a prefeitura pretende inaugurar mais 20 CAPS nos próximos quatro anos).

Ainda assim, ele conclui a coluna com uma frase bombástica: “É hora de revogar essa lei idiota que provocou tamanho desastre”.

A “lei idiota” simplesmente não existe da forma como ele a imagina.

3 comentários:

  1. Mas ele é uma bela duma anta. Desculpe os termos! E você como sempre é tão coerente que não tem como não te ouvir.

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  2. O que a gente vê na história da Glória Peres sobre pobres com ótimo atendimento na rede pública é ficção mesmo.

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  3. Como médico, acredito que esta lei consegue impedir a exclusão de pessoas com transtornos mentais e jogá-las em manicômios para o resto da vida e criar depósitos de gentes inúteis, que na verdade, se tratadas adequadamente, podem ser reintegradas à vida social.

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