quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Maus Médicos, Mais Médicos, Maus Modos

O debate sobre o Mais Médicos trouxe uma boa novidade: aqueles que normalmente defendem incondicionalmente e homogeneamente categorias inteiras de funcionários públicos reconheceram, pela primeira vez, que há profissionais com zero compromisso no serviço público.

Sou usuária do SUS e tenho amizade bem próxima com usuários da periferia - Brasilândia, Jardim Capela, Santo Amaro, Grajaú. Há ocasiões em que os médicos simplesmente não vão trabalhar. Em outras, chegam com horas de atraso. Ficam batendo-papo enquanto a sala de espera está cheia. "Examinam" as pessoas sem se levantar da cadeira, sem encostar um dedo no paciente. São estúpidos no trato com os doentes. Receitam qualquer coisa, no chute. Não querem nem saber se o medicamento está disponível no SUS ou não.

Com a decisão do Ministério da Saúde de incentivar a facilitar a vida de médicos estrangeiros, petistas começaram a se referir aos médicos que já trabalham no sistema público "vagabundos" e "mercenários". Aí já transformaram todo mundo em vilão.

Se há médicos que nem por todo o dinheiro do mundo aceitam ir trabalhar na periferia, serão eles os mercenários? Não seriam os que aceitam um salário que consideram ridículo, desde que possam trabalhar "nas coxas" na rede pública e acumular outro emprego?

Quem não aceita é muito mais digno do que quem vai só pelo dinheiro. Alguns recusam ir para "as bordas" das cidades ou o interiorzão do país porque temem por sua própria segurança. Outros não suportam a falta de condições de trabalho. Outros não querem levar duas ou três horas para chegar ao seu local de trabalho; outros não querem morar a centenas de km de distância da família. Estão errados?

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Sem melhorar as condições de trabalho (afinal, o Programa não inclui reformas nos locais de trabalho, aquisição de novos equipamentos, garantia de abastecimento dos materiais necessários, contratação de pessoas para todos os postos de trabalho, informatização dos prontuários etc), o governo oferece dez mil reais para quem aceitar trabalhar no SUS do jeito que ele está agora.

No caso dos brasileiros, bolsistas que estão fazendo Residência. Para quem não sabe, esse é o período em que um profissional já formado na faculdade de medicina começa a dar expediente em um hospital etc sob a supervisão de um profissional experiente. (Veja no site do Ministério da Educação)

Tem gente que até reclama de ser atendido por residente no Hospital das Clínicas, por exemplo, dizendo que não quer passar por "estagiário", mas a Residência equivale a uma pós. Só que EXIGE a supervisão (diz lá o MEC: "sob a orientação de profissionais médicos de elevada qualificação ética e profissional").

Perguntei ao Ministério da Saúde no Twitter como ela seria feita. A resposta foi que haveria um preceptor POR ESTADO. Imagine se é suficiente!

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Quando da implantação da gestão de unidades de saúde por Organizações Sociais na cidade de São Paulo, os opositores (basicamente o PT) criticavam o programa por ser "privatização" da Saúde (não é; o equipamento continua público, universal, gratuito); pela "precarização" das relações de trabalho (por serem os profissionais contratados em regime de CLT pelas OSs em vez de serem servidores efetivos, portanto com estabilidade); "flexibilização" ou "falta de transparência" no processo seletivo (por não haver concurso público); desequilíbrio entre pessoas que exercem as mesmas funções (o médico que é "de carreira", com seus vencimentos normais, e o celetista contratado pela OS, que tem salário melhor).

Pois bem - o Mais Médicos é tudo isso e pior ainda. Profissionais são incorporados à rede pública em condições nem sempre claras, com processo seletivo "especial", alguns trâmites legais contornados e um salário muito maior do que o dos demais profissionais.

Imagine o médico que há anos pasta no serviço público trabalhando ao lado de um residente que ganha dez mil reais. E imagine o cubano que veio para exercer a medicina, não como militante político, descobrir que ele é tratado como um estrangeiro "diferenciado" - para pior. Ganha muito menos do que os outros e parte de seu salário é depositada à força em uma caderneta de poupança, como fazem com presidiários, ao qual ele só terá acesso quando terminar de cumprir o contrato e voltar para Cuba.

Retenção de rendimentos como forma de manter o profissional "preso" ao contrato é uma das características de trabalho análogo à escravidão... Sem contar as restrições impostas quanto à circulação, convivência com a família etc.

"Vieram porque quiseram", dirão alguns. "Se não leram o contrato, problema deles". "Se leram e não se opuseram antes, por que resolveram falar agora"?

Ora, quem nunca descobriu depois de começar a trabalhar que tinha se metido em uma roubada? Ou se deu conta do tamanho da roubada?

No caso da médica que "desertou" o Mais Médicos (desertou! é a palavra usada quando soldados obrigados a lutar por sua pátria se recusam a fazê-lo), imagine o que é descobrir que foi tapeado pelo patrão e ele é... o governo de seu país. Ou o governo do Brasil. Ou a OPAS, sei lá.

Porque esse é um dos problemas da situação dos cubanos do Mais Médicos. A contratação deles foi "em massa" e passou por um intermediário. Parte do salário ficou retida por ele e parte foi remetida ao governo de Cuba - que é isso, aluguel de mão-de-obra? E o compromisso é com o governo brasileiro, que "flexibilizou" várias regras para poder contar com eles.

"A OPAS já fez convênios assim com dezenas de outros países", defende o Ministério da Justiça. E...? Que sabemos sobre as condições de trabalho nesses outros países?

Enfim, o "programa" é repleto de pontos obscuros ou francamente irregulares. MAS, como é comum acontecer neste governo, quem faz críticas a ele é contra os pobres, a favor das corporações, capitalista maldito, coxinha etc. Impressionante o discurso panfletário em defesa do governo. Do governo!

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"Programa", entre aspas, porque não faz jus a essa classificação. Trata-se tão somente da contratação temporária de profissionais para preencher postos vagos na rede pública. Supostamente, para reduzir as filas e melhorar muito o atendimento à população, além de fazer a prevenção e promoção da Saúde.

Mas faz muito menos do que isso. A Atenção Básica é fundamental; o acompanhamento atento, próximo, continuado. Perceber as condições que propiciam o surgimento de doenças ou detectá-las bem no início. Mas isso envolve bem mais do que o médico no consultório. As equipes de Saúde da Família, que visitam as residências em vez de esperar que as pessoas vão ao médico, são fundamentais. E são EQUIPES, com vários profissionais envolvidos, não um médico sozinho para dar conta de tudo.

A promoção da Saúde exige mais ainda do que isso. Saneamento Básico, por exemplo. Moradia digna, em condições de salubridade. Meio Ambiente equilibrado. Educação. Alimentação saudável. Boa dentição. Trabalho decente. E o governo é PÉSSIMO na garantia desses direitos.

Para completar, em locais sujos, com janelas quebradas, sem medicamentos, sem lençóis limpos, sem suprimentos como material para sutura ou equipamento de Raio-X, o médico não melhora o sistema o suficiente para reduzir o sofrimento das pessoas. Elas vão continuar na fila, no vai-e-vem, na incerteza, na dor, na recaída.

Os Pronto-Socorros continuam em petição de miséria. Faltam outros profissionais - pediatras, geriatras, ortopedistas, fisioterapeutas, psiquiatras, dentistas. Ambulâncias. Combustível para ambulâncias.

(O Ministério costuma colocar a culpa nas prefeituras pelas ambulâncias que não rodam. Mas se elas NÃO TEM DINHEIRO, o que vão fazer? Vender uma para conseguir abastecer a outra? Os municípios sofrem com falta de dinheiro e não é só um problema de "má gestão" ou da corrupção; nosso sistema tributário, nossa federação toda torta os suga e concentra MUITO dinheiro na União, à disposição do governo federal. Que devolve pingadinho daqui ou dali e ainda diz "e não reclamem! Agradeçam pelo que estamos dando". E os hospitais das Universidades FEDERAIS, como o da UFRJ, estão caindo aos pedaços!!!).

Mas na propaganda - que custa caríssimo! Anúncios no intervalo do Jornal Nacional! - tudo é lindo, claro. Quem está sofrendo lá longe não aparece na TV. E quem está aqui conforável assistindo e tem boa vontade ou paixão pelo governo Dilma diz "como somos bons para os pobres", sem jamais por os pés em uma UBS, UPA, Pronto-Socorro ou coisa que o valha.

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Tristeza e raiva que me dá.




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