quinta-feira, 28 de junho de 2018

Entre a negação da direita e hipocrisia da esquerda

Assim escreveu o Bruno Frederico Müller em seu Facebook, em post compartilhado por meu amigo Cesar Hernandez, de que gostei tanto que quis importar pra cá.

Estou surpreso com a entrevista de Guilherme Boulos ao programa Roda Viva, e sua repercussão.

Sobre a postura do candidato, destacaram sua coragem e ousadia, sem medo de defender suas posições. Disseram que Boulos saiu da entrevista maior do que entrou, e que encarnou os sonhos e esperanças de uma esquerda renovada. "Está nascendo um novo líder. Um grande líder", eu li por aí.

Medo, Boulos realmente não teve. E de fato, coragem e ousadia são duas grandes virtudes, para qualquer um, embora devam ser bem temperadas pela prudência, especialmente para um grande líder, se ele não quiser levar um país inteiro à estrada para a ruína - o que parece ser o caso. Boulos teve, isto sim, coragem de defender um programa arcaico.

E convenhamos que os entrevistadores, fracos, não se esforçaram para colocar o dedo na ferida. A única pergunta mais espinhosa foi sobre a Venezuela. No que o candidato fracassou tanto em princípio, quanto em estratégia:

Como assim, um candidato que se apresenta como um homem de princípios, faz apenas uma crítica pragmática, de viés econômico ("a Venezuela não expandiu sua matriz econômica"), sobre a ditadura Maduro? E a democracia, que Boulos diz estar a perigo no Brasil, onde as instituições e garantias fundamentais ainda vigem? E os direitos humanos, tortura, prisões arbitrárias sem julgamento, como lida com isso um homem que representa um movimento por direito à moradia e viaja o país denunciando a suposta prisão arbitrária de um ex-presidente a quem se concedeu todas as garantias de ampla defesa?

Abriu-se aqui amplo flanco de ataque, que os entrevistadores não souberam ou não quiseram explorar: a hipocrisia e seletividade dos princípios de Boulos, homem que fala do déficit democrático no Brasil, reduzindo a crise humanitária venezuelana à má gestão da economia.

E essa está longe de ser a única derrapada do candidato.

O Brasil tem problemas sociais graves. Muita pobreza, muita injustiça, muitos privilégios para a elite do nosso Estado corporativo, muito descaso com problemas básicos como saúde, saneamento básico, educação. Muita corrupção que a esquerda decidiu que não é problema, pois seu combate atingiu seu maior líder e seu maior partido. Há uma carência de oportunidades para as pessoas se desenvolverem minimamente. Não falo só de emprego, mas de educação, de cultura, de possibilidades para uma vida plena. Há, também, desigualdades evidentes e impossíveis serem justificadas e relativizadas. Mesmo quem admite que a desigualdade é inerente a qualquer sociedade, há de se empenhar em minimizá-la, e aos seus efeitos mais perversos. E não há um único candidato capaz de articular essas demandas numa proposta coerente, factível e democrática. Vivemos entre a negação/negligência da direita e o voluntarismo/hipocrisia da esquerda.

Em vez de encarar o problema com profissionalismo, seriedade, planejamento, estudo, Boulos segue se portando como se estivesse num comício, não se prestando a liderar a parcela da população que deseja mudanças estruturais, e ocupar o mais alto cargo político da nação com o compromisso de empreender tais mudanças. E, para piorar, incorpora a nova doença infantil da esquerda, esse discurso falacioso das pautas identitárias, reducionista, que nem sequer arranha a verdadeira raiz dos problemas sociais, muito menos o que eles têm de mais perverso. Criar cotas é muito, muito diferente de universalizar direitos. É garantia de mais ódio e divisão social, é garantia de gerar novas formas de exclusão, discriminação e injustiça. É garantia de levar mais água para o moinho da extrema direita. Para dar um exemplo, eu senti um calafrio quando ele falou sobre cotas pra mulheres no parlamento. Trata-se de populismo barato que ignora o básico sobre a realidade das questões de gênero, para além dos slogans feministas. Com essa proposta, ele chama as mulheres de idiotas, traidoras ou preguiçosas por, num regime democrático, não se filiarem a partidos, não concorrerem em eleições livres nem votarem em si mesmas. É uma proposta que, como outras que ele defende, soa bonita e inclusiva, mas requer medidas autoritárias e antidemocráticas para ser implantada.

Não é só a carência de líderes diante de um sujeito minimamente articulado. Nem o encanto com frases de efeito sem conteúdo. Tudo isso é problemático. Mas o pior é a disposição da esquerda para fechar os olhos, ou a incapacidade de enxergar, as armadilhas de autoritarismo e arcaísmo no discurso de Boulos. Mesmo a Venezuela estando aqui do lado. Mesmo havendo inúmeras fontes apontando os buracos no discurso identitário. É triste ver a adesão cega a essa combinação de stalinismo mofado e identitarismo pós-moderno, sem atinar, ou sem se importar, para suas implicações graves.

Chegamos num paradoxo que eu não sei como equacionar: enquanto o Brasil for esse país injusto e desigual, terá oferta e demanda para esse discurso falacioso, populista e autoritário. Romper com esse discurso parece depender de melhorias básicas, tanto nas condições materiais que tornem o extremismo e o voluntarismo menos palatáveis, quanto na educação, que torne as pessoas mais conhecedoras da realidade e críticas de discursos fáceis. Mas essas melhorias básicas não virão enquanto a esquerda não puser o pé no chão, parar de alimentar utopias que se transformam em pesadelos distópicos, e aceitar a via menos glamourosa da democracia, que pode conciliar a luta por justiça com o respeito à vida e à liberdade.

A síntese parece ser essa: Boulos discursa para e como sua plateia, sem profundidade, sem reflexão, sem estudo, sem diálogo como quem não habita sua bolha, cercado de slogans. Ele se apresenta como candidato a presidente, mas segue sendo um ativista social sem maiores compromissos com a realidade e com uma visão ampla do país que quer comandar e os problemas que ele enfrenta. Cheira a oportunismo de quem quer faturar com o desejo de mudança. Mas pode ser estupidez, também.

Eu só fiquei mais desgostoso com Boulos depois da entrevista de ontem, fiquei ainda mais desolado com o vazio de ideias da esquerda, e chocado com as reações positivas. Se o projeto de transformá-lo na nova grande liderança da esquerda brasileira vingar, é a garantia de que ela prosseguirá no pior do século XX, em vez de apontar para algo melhor no século XXII. Lamentável.

Estou surpreso, embora não devesse. Era tudo previsível. E depois as pessoas me dizem que sou pessimista.


Me economizou um post rs. Eu só comentei:

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