sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Aberrações Constitucionais: sobre perda de mandato

De vez em quando é bom dar uma olhada em nossa Constituição Cidadã, que é linda mas, até por ser muito extensa (extensa demais, na minha opinião), não é dada a conhecer assim com muita facilidade.

Vejamos o que diz o art. 55:

Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:

I - que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior;

II - cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar;

III - que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada;

IV - que perder ou tiver suspensos os direitos políticos;

V - quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos nesta Constituição;

VI - que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado.

Líquido e certo, não?

Não.

***
1 - Quais são "as proibições estabelecidas no artigo anterior"?

A elas:

Art. 54. Os Deputados e Senadores não poderão:

I - desde a expedição do diploma:

a) firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público, salvo quando o contrato obedecer a cláusulas uniformes;

b) aceitar ou exercer cargo, função ou emprego remunerado, inclusive os de que sejam demissíveis "ad nutum", nas entidades constantes da alínea anterior;

II - desde a posse:

a) ser proprietários, controladores ou diretores de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público, ou nela exercer função remunerada;

b) ocupar cargo ou função de que sejam demissíveis "ad nutum", nas entidades referidas no inciso I, "a";

c) patrocinar causa em que seja interessada qualquer das entidades a que se refere o inciso I, "a";

d) ser titulares de mais de um cargo ou mandato público eletivo.

Aqui já há alguns pontos sujeitos a interpretação. O que são "cláusulas uniformes"? O que é "patrocinar causa" e como decidir que ela "interessa a qualquer das entidades" do inciso "a"? Organizar um evento e imprimir folhetos para debater a cobrança pelo uso de água é patrocinar causa que interessa à Sabesp?

Portanto, o inciso I do artigo 54 ("Perderá o mandato o Deputado ou Senador que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior") precisa ser analisado com cuidado.

2 - O que é "procedimento incompatível com o decoro parlamentar"?

Aí é o próprio artigo 55 quem diz:

1º - É incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas"

Ou seja... Aqui também cabem quilômetros de discussões. Temos de ver quais são os casos definidos no regimento interno (aqui o link para quem quiser e tiver tempo de pesquisar), o que configura "o abuso das prerrogativas" (a meu ver, daria para enquadrar uns 450 nisso aqui) e como concluir ou comprovar que houve "percepção de vantagens indevidas". Portanto, não é algo do tipo 2 - 2 = 0. ("Um disse que a mãe do outro é sem-vergonha e roubou dinheiro público - o outro respondeu "é a sua que é safada e prometeu um monte de obra e não fez nenhuma" - estão cassados por quebra de decoro". Não, não é simples assim...)

3 - "Perderá o mandato o deputado ou senador que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada";

Opa, aqui a matemática já é mais exata. Faltou a 30% das sessões? Não estava de licença? Perde o mandato. Mesmo assim, é compreensível que o parlamentar tenha o direito de se defender. Pode não ter saído de licença mas deixado de comparecer a sessões ordinárias por motivos justos e relevantes. É curioso que o artigo fale de "licença ou missão autorizada" mas não preveja nenhum tipo de justificativa por ausência eventual. Ou seja - tem o condão de ser rigoroso DEMAIS, e resultar na perda do mandato de gente séria só porque faltou a algumas sessões a mais do que o outro que é um assassino de serra elétrica. Então é justo que esta perda de mandato seja discutida e não "automática".

4 - "Perderá o mandato o deputado ou senador que perder ou tiver suspensos os direitos políticos";

Parece-me que o deputado ou senador pode discutir em outras esferas (Justiça) a suspensão ou perda de seus direitos e, assim, alegar que, enquanto a perda ou principalmente a suspensão não estiverem confirmadas de modo irrevogável, não cabe a perda de mandato. (Aliás, para direitos suspensos o mandato poderia ficar suspenso e não "perdido"... Parece-me justo)

5 - "Perderá o mandato o deputado ou senador quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos nesta Constituição";

Não há muito que debater: se a Justiça Eleitoral decretou a perda do mandato, está decretado e pronto. Mas... De novo, como no artigo anterior: e se couber recurso? Não seria mais correto que o mandato ficasse suspenso?)

6 - "Perderá o mandato o deputado ou senador que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado".

De todos os artigos, esse é o único que não permite dúvidas. Não há o que debater: "condenação criminal em sentença transitada em julgado".

MASSSSSS

***
Segue o artigo 55:

§ 2º - Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.

§ 3º - Nos casos previstos nos incisos III a V, a perda será declarada pela Mesa da Casa respectiva, de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros, ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.


VÊ SE PODE.

Se o parlamentar faltou a mais de 1/3 das sessões, tiver suspensos os direitos políticos ou caso a Justiça Eleitoral tenha assim determinado, a Mesa da Câmara declara a perda do mandato e pronto, tendo sido "provocada" (é a palavra que se usa mesmo) por um parlamentar ou partido com representação na Casa.

"Assegurada ampla defesa"... O que meio que coloca tudo na estaca zero. Se tem a ampla defesa - justo - como é que a Mesa vai declarar a perda "de ofício"? O parlamentar vai se defender perante a Mesa, é isso? Já que o plenário não opina...

Continuando:

Se o parlamentar foi acusado de "patrocinar causa em que seja interessada qualquer das entidades a que se refere o inciso I", como uma "sociedade de economia mista" ou de "quebrar o decoro", o plenário vai debater e decidir, por meio de voto secreto [aberração constitucional...], se ele perde o mandato ou não.

E se o deputado ou senador tiver sofrido "condenação criminal em sentença transitada em julgado" - A UNICA das clausulas que não deixa uma margenzinha sequer para dúvida - ele perder ou não o mandato será decidido por votos dos colegas!!!!!!!!

A-B-SUR-DO

***
Então aí está, réus condenados a pena de regime fechado ou semiaberto pelo Supremo Tribunal Federal podem, a critério de seus colegas que não precisam sequer revelar o que pensam, continuarem deputados enquanto passam o dia todo ou a noite encarcerados.

Tem horas que a Constituição #naomerepresenta

4 comentários:

  1. Vou responder esse seu post com um artigo no meu bloguinho, tudo bem?

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  2. Soninha, respondi este post em 4 partes no meu blog. Espero que veja.
    Parte 1: http://lekkerding.com.br/archives/1240
    Parte 2: http://lekkerding.com.br/archives/1246
    Parte 3: http://lekkerding.com.br/archives/1253
    Final: http://lekkerding.com.br/archives/1256

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  3. Depois de muito penar, consegui ter acesso à internet novamente.
    É tudo tão divertido!
    Sua interpretação é literal, não leva em conta o sistema como um todo, não leva em conta a realidade, a lógica e o espírito da Constituição.
    Mas é uma interpretação válida.
    Aliás, valiosíssima.
    O Supremo tem mais é que ficar quieto, porque o legislativo se enforca sozinho.
    Muito mais legal de ver o suicídio do que as lições de moral dos togados.
    Que se matem!

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  4. Soninha F.,
    Proponho as seguintes reflexões, já que você está no embalo constitucional.
    Premissa 1: a parte que perdeu pode recorrer para o mesmo grupo de juízes que a condenou, desde que tenha recebido um voto favorável.
    Pois bem, pergunto:

    a) Os juízes que o apreciarão devem necessariamente ser os mesmos?
    b) Caso se admita a substituição de juízes, os substitutos podem votar em sentido oposto ao dos substituídos?
    c) Caso se admita a manifestação oposta, essa nova manifestação de quem nunca se manifestou tem caráter de revisão (ver novamente) ou se trata de nova visão?
    Veja bem, hein, não estou aqui nem questionando a forma de nomeação dos substitutos, nem tampouco o cabimento do recurso. Dei de barato essas questões.
    Aliás, acho justo que alguém tenha uma expectativa legítima de recorrer, quando existe essa previsão em determinado regulamento, principalmente quando haja dúvida acerca da validade dessa previsão.
    E acho injusto que essa expectativa seja podada de sopetão.
    Mas também acho estranho que a natureza de um recurso que deveria submeter novamente a questão àqueles que condenaram, para que pensem novamente acerca do juízo que fizeram inicialmente, seja submetida a outras pessoas.
    Se isso acontecer, só posso lamentar as falhas do sistema, inúmeras e monumentais. Mas é um preço módico para a democracia aceitar esses problemas, demore o que demorar.
    Sugestão futura para essa questão pontual? Tenho sim: no julgamento de embargos infringentes os juízes substitutos estão impedidos de votar em questão já decidida pelos substituídos.
    Afinal, minha imortal, de nada vale rogar à outra o amor negado pela mulher amada...

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